Mama Minha, ou os efeitos do abuso clínico sobre a amamentação

08-10-2010 10:42

Em Portugal, com toda a razão de ser, remetemos para o mês de Outubro a comemoração da Semana Mundial do Aleitamento Materno. O termo não é feliz. Melhor seria designar a efeméride como Semana Mundial da Amamentação, evitando, sem margem para dúvidas, a possibilidade de equívocos, e reconhecendo ainda o carácter único e distintivo do meritório acto de amamentar. Afinal, o dicionário prevê, como significado para a palavra “aleitamento”, o “acto de criar com leite”. Ora, assim sendo, toda a mãe que faculte leite ao seu filho, como forma de alimento, está a aleitá-lo, não obstante a origem do leite em causa. Já a mãe que amamenta não está senão a dar mama, ou leite da mama. Ponto final. 

 O aparente preciosismo que abriu este editorial não vem ao acaso, pois a apologia do aleitamento, tout court, acaba por viabilizar e camuflar formas diversas de abuso, praticado sobre mães e bebés, sobretudo no pós-parto imediato. Quem se obstina com o aleitamento – assim designado, ao invés de falar abertamente em amamentação – incorre mais facilmente na banalização e subavaliação de práticas muitas vezes abusivas e mais que contra-indicadas, por porem em risco o êxito da amamentação. Falamos de certos procedimentos levados a cabo no pós-parto imediato, na sequência de gravidezes e partos normais, sem intercorrências dignas de registo, apresentando-se bem, quer as mães, quer os bebés. São exemplos destas práticas:

  • Separação mãe/bebé, sob o pretexto da prestação de assistência imediata ao recém-nascido (exames de avaliação preliminar, prevenção de hipotermia, administração de fármacos diversos, limpeza, etc);
  • Aspiração das vias aéreas superiores;
  • Alimentação do recém-nascido com substitutos do leite materno;
  • Apresentação de chuchas ao bebé.

Como sabemos e recomenda a OMS, o facto de o bebé se manter com a mãe, em contacto pele-com-pele, imediatamente após o nascimento e pelo máximo tempo possível, propicia o início do processo de amamentação no decurso da primeira hora de vida – condição ideal para garantir o êxito da própria amamentação. Êxito este que pode ser igualmente comprometido pela ocorrência de eventuais lesões resultantes da aspiração das vias aéreas superiores no bebé, ou pelo estímulo inapropriado do reflexo de sucção, aquando do recurso a biberões e chuchas, normalmente associado à saciedade do recém-nascido por meio de leite de fórmula. Para além dos riscos associados ao uso de substitutos do leite materno, este procedimento vem perturbar, por vezes de forma irrecuperável, o frágil equilíbrio entre a produção de leite por parte da mãe e a exigência de alimento por parte do bebé. Em relação às rotinas de assistência ao recém-nascido no pós-parto imediato, convém esclarecer que, em circunstâncias normais, nenhum destes actos tem de acontecer no decurso da primeira hora após o nascimento, longe da mãe - estes podem esperar ou ser levados a cabo com o bebé em contacto físico com a mãe,  e devem merecer ponderação.

 

Neste contexto, nunca é demais recordar que todo o acto clínico praticado sobre a mãe e/ou o seu bebé está dependente da obtenção prévia de consentimento informado junto da mulher em causa. Por outro lado, do conjunto das más práticas citadas, aquelas que não se enquadram na definição de “acto clínico”, como seja a apresentação de chucha ao bebé, deveriam contar com o entrave do dever de actuação clínica em função do supremo interesse do recém-nascido, como muito bem preconiza a iniciativa "Hospitais Amigos do Bebé", por meio dos seus 10 Passos, que este ano são tema aglutinador das iniciativas de comemoração da Semana Mundial do Aleitamento Materno.

Resumindo, sempre que os procedimentos anteriormente enumerados têm lugar escudados na desinformação e falta de consentimento, é de abuso que estamos a falar; falamos, sem dúvida, de uma forma grave de boicote à melhor fonte de alimento, saúde e vinculação com que um bebé pode contar.

 

 

Por Sílvia Roque Martins

(Coordenadora do Projecto Mal Me Quer)

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